segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

MATOU O AMANTE E FOI AO CINEMA


            Geraldine era vizinha de porta de Valdirene. Fã de cinema, orgulhava-se de seu nome ser o mesmo que o da filha de Charles Chaplin, um mestre, como dizia.
            Desde pequena, pela mão do pai, Geraldine ia assistir as sessões de domingo. O dinheiro era sagrado para o ingresso. O pai tinha uma verdadeira paixão pelos grandes diretores: Chaplin, Fellini, Visconti, De Sicca e a fazia observar cada cena, cada close, cada sombra. Geraldine cresceu e junto com ela a paixão pela telona.
            Com idade para arranjar emprego depois de sua formação em datilografia, com diploma de mérito, arranjou colocação em um escritório de advocacia no centro da capital, bem perto do Cine Ritz. Ah, mas que achado!
            A sessão das moças, às terças-feiras eram imperdíveis, com aqueles filmes açucarados, os musicais da Metro com Doris Day, Gene Kelly, Debbie Reynolds, Fred Astaire...Adorava. No escritório, no outro dia, sempre que tinha folga puxava conversa com as amigas e o assunto primeiro era cinema. De tanto falar, algumas já nem davam bola, pois Geraldine estava, no dizer delas, ficando muito chata com aquela história de dar a ficha técnica do filme que havia assistido. E se afastavam.
            Geraldine foi ficando solitária com sua paixão. Confidenciava com Valdirene suas desditas. Valdirene não entendia uma só palavra da amiga, mas boa ouvinte, na falta de ter o que fazer, ouvia a amiga declinar aqueles nomes esquisitos de enrolar a língua.
            Geraldine, após a morte do pai alugara o apartamento ao lado do de Valdirene e ali vivia sozinha. Gostava da amiga tão sofrida com aqueles três filhos e mais um a caminho e se conformando com a frase “Deus quer, Geraldine, tenho que aceitar”. “Mas pelo amor de Deus, Valdirene, és tu que dormes com o Otávio, não é Deus. Usa preservativo, poxa!” Que nada! De dois em dois anos, mais uma barriga cheia. Sempre que podia Geraldine comprava um mimo para a amiga, ora uma meia de seda, ora uma écharpe para que ela não perdesse o brilho feminino.
            Valdirene também gostava muito de Geraldine e procurava entre os amigos de Otávio, alguém para fisgar o coração solitário da amiga. “Deixa, Val, eu tenho Errol Flynn, Robert Taylor, Rock Hudson. Eles me amparam”.
            “Mas, por Cristo, Geraldine, eles nem sabem que tu existes! Arranja um homem, já é tempo!”
            E, um belo dia, aconteceu. Ela estava na fila da sessão das moças – iria passar Assim caminha a Humanidade, com Rock Hudson e Elizabeth Taylor – e ela sentiu aquele olhar em todo seu corpo. Sentiu um arrepio percorrer toda sua espinha e retribuiu o olhar. Comprou o ingresso, subiu as escadas do Ritz (gostava de assistir os filmes na parte de cima, não sabia porque). Sentou-se em uma fileira com poucos lugares ocupados e o dono daquele olhar penetrante pediu licença e sentou-se ao seu lado.
            Geraldine sentiu as pernas tremerem. O jovem – chamava-se Alberto – puxou conversa. Disse que já a estava observando há tempos, mas que ela não havia percebido até aquele dia. Geraldine concordou e o papo continuou até o início do filme.
            E o namoro aconteceu. E muitas sessões de cinema. Ele mudou-se para o apartamento dela. Com o tempo, de tanto Geraldine falar – com conhecimento de causa pois estudava cada filme, comprava revistas, fazia coleção de recortes de jornais e fotos autografadas, discos de trilhas sonoras – Alberto começou a se irritar. E Geraldine não perdia um filme novo. Alberto não tinha como pagar sempre os ingressos, mas Geraldine não se importava, ela pagava pelos dois, já que tinha sido promovida chefe do setor no escritório de advocacia, ganhando bem.
            Alberto, machista como ele só, não gostava que Geraldine pagasse os ingressos, mas homem apaixonado agüenta os caprichos da amada.
            Até que um dia a coisa pegou. Alberto irritava-se freqüentemente e começou a podar as saídas de Geraldine para o cinema. Ela simplesmente respondia “não queres ir, vou sozinha; já estou acostumada”. Sempre havia uma discussão e Geraldine saía.
            Certa ocasião, Geraldine ousou dizer “o apartamento é meu, os incomodados que se mudem”. Bastou esta frase e a mão de Alberto em seu rosto foi imediata. Geraldine não esboçou reação. Levantou-se e mesmo com o rosto inchado, cobriu o machucado com maquiagem e saiu. Afinal, era dia da estréia de Ben-Hur e ela jamais havia perdido uma estréia em sua vida.
            No retorno, encontrou o apartamento bagunçado. Por vingança, Alberto havia destruído o álbum de recortes, as fotos de Rock Hudson (mais de uma) todas rasgadas, as revistas sem capas, enfim, uma bagunça total.
            Alberto só voltou ao apartamento às duas da madrugada, bêbado como um gambá. Esperava uma reação da amante e estava preparado, mas encontrou a casa em ordem com os recortes colados, as revistas em seus lugares, as fotos novamente em seus álbuns e Geraldine calmamente lendo Cahiers du Cinèma, como se nada houvesse acontecido. Lendo estava, lendo ficou.
            Alberto se jogou na cama do jeito que estava.
Na manhã seguinte – terça-feira – Geraldine saiu para o trabalho (Alberto de há muito havia perdido o seu na loja de ferragens) e deixou um bilhete “hoje virei almoçar em casa”.
Alberto, perto de 11 horas acordou-se e começou o almoço, coisa que vinha fazendo desde o desemprego. Antes abriu umas cervejas.
Geraldine chegou calma, tranqüila, beijou Alberto e almoçou. Elogiou o cozinheiro e disse que tinha tempo, iria lavar a louça, que ele fosse descansar, escutar as notícias no rádio.
Assim Alberto fez, certo de que sua atitude tinha revelado que quem mandava em casa era ele. Ouvindo o rádio e com o efeito das cervejas do almoço e resquícios do porre da noite anterior, Alberto adormeceu. Para nunca mais acordar. Geraldine, sem dó nem piedade, cravou-lhe um punhal no peito que foi fatal.
Geraldine observou o corpo sem vida do amante, mas não se abalou. Arrumou-se calmamente, fechou o apê e saiu. Afinal, era dia da sessão das moças e Marlene Dietrich estaria brilhando na tela em Testemunha de Acusação.
Depois viria o que fazer com o corpo.

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